Matriz energética brasileira ameaçada

As emissões de gases de efeito estufa (GEE) devidas ao Brasil representam cerca de 4% das emissões mundiais. Perto de 70% destas decorrem do uso de combustíveis fósseis. No entanto, as emissões do setor energético brasileiro limitam-se a menos de 1% das emissões mundiais, graças à composição de sua matriz energética, que conta com perto de 50% de energias de fontes renováveis. As demais emissões do país decorrem de desmatamento, queimadas, atividades agropastoris e outros usos do solo.

Mesmo que a participação do setor de energia brasileiro na totalidade das emissões globais de GEE seja relativamente pequena, a transição energética do país é indispensável, com ainda maior participação de fontes de energia renovável em sua matriz e aumento da eficiência energética. Assim, o país contribuirá para evitar o acúmulo de GEE na atmosfera e proporcionará exemplo de esforço nacional para reduzir o aquecimento global, inclusive para pressionar seus pares nessa direção.

Apesar das intenções e compromissos de muitos países, inclusive dos maiores emissores de GEE, serem animadoras e fazerem boa figura, o que tem sido realizado está muito aquém e justifica crescente preocupação com as futuras condições ambientais. Em tal contexto, cada país, possivelmente com apoio de organismos internacionais, terá de buscar sua adaptação e mitigação dos efeitos da mudança de clima. Tais medidas devem ter prioridade compatível com a importância dos prejuízos que a mudança climática possa acarretar à infraestrutura, à atividade e ao bem-estar social.

A configuração da matriz energética brasileira, excepcionalmente favorável ao meio ambiente, pode ser vista como meio caminho andado em relação a um quadro energético isento de emissões. No entanto, apresenta grave risco para o país num contexto de mudança climática que afete as fontes de energias renováveis: alterações dos regimes de chuvas poderão prejudicar tanto a geração hidrelétrica quanto a agroindústria, como a de cana de açúcar, milho, soja e florestal. Alterações de regime de ventos podem alterar a produtividade dos geradores eólicos e podem comprometer a segurança de instalações de transmissão e distribuição de energia elétrica. Intempéries podem prejudicar a obtenção e o suprimento de combustíveis.

Portanto, o planejamento do setor energético deve contemplar alternativas e salvaguardas que preservem a regularidade do atendimento aos requisitos da sociedade. À natural sazonalidade somar-se-á a irregularidade ou intermitência de diversas fontes primárias, o que exigirá a regularização do suprimento mediante instalações de armazenamento de energia e maior utilização de fontes cujo funcionamento seja mais estável e de baixa emissão de carbono.

Será necessário mitigar a provável alteração das afluências às hidrelétricas, mediante mais reservatórios, baterias e hidrelétricas reversíveis, que aproveitem excedentes de energia, inclusive de outras geradoras, como as eólicas e solares. Conforme verificado, essas afluências também vêm sendo modificadas por desmatamento dos mananciais, uso de água para fins urbanos e agrícolas. As frequentes interrupções do fornecimento de energia elétrica devidas à vulnerabilidade das redes de distribuição a fenômenos climáticos poderão ser mitigadas pela atuação cooperativa das empresas concessionárias. Estas deveriam poder dispor de parte de seus técnicos àquelas momentaneamente prejudicadas.

Usinas nucleares, cuja produção pouco depende de fatores climáticos, devem consideradas. Além de concluir a construção de Angra III, é preciso avaliar as tecnologias que venham a ser mais favoráveis ao contexto brasileiro, em termos de escala, tempo de construção, flexibilidade de operação, inserção no sistema interligado nacional, aproveitamento da infraestrutura existente no país, além das possibilidades de contar com recursos privados para sua implantação.

Fontes primárias de bioenergia como o etanol e o biodiesel, que têm origem agrícola, são mais dificilmente protegidas, mas são passíveis de recuperação e a solução aparentemente prioritária é a formação de estoques reguladores da oferta plurianual desses combustíveis. Medidas análogas caberão no tocante ao suprimento de derivados de petróleo e ao de gás natural, pois suas infraestruturas de produção, refino e processamento também podem ser afetadas por intempéries. Essas medidas paliativas e preventivas deveriam ser concebidas de forma a serem remuneráveis para que possam interessar a investidores locais e internacionais, inclusive privados, além de instituições multilaterais. E é necessário que sejam concebidas e programadas com a devida antecedência. Frente a fenômenos previsíveis, improvisação é inaceitável.

A sustentabilidade do fornecimento de energia exigirá que os custos dessas medidas protetivas sejam incorporados aos preços, além de elementos que reflitam os custos das externalidades ambientais da obtenção e uso da energia. Estes últimos, como prejuízos à saúde e à produtividade da economia, até agora majoritariamente socializados, poderão ser indicados pelo mercado de carbono ou outros mecanismos que reflitam os impactos ambientais de decisões de consumo. A incorporação de custos ambientais aos preços de produtos deveria ser prevista na avaliação das próximas decisões de investimento pois poderá afetar a viabilidade do empreendimento. E para que a sociedade reconheça a necessidade de passar da condenação retórica para a sinalização monetária dos prejuízos ambientais, será preciso ter clareza e justificativa na formação de preços. Afinal, o custo da mudança climática, apesar de inaceitável, não deve constituir motivo para que se aceite qualquer preço de medidas que o evitem.

Para implementar, a tempo, tantas medidas de custo considerável, será de grande valia contar com o avanço do conhecimento em áreas fundamentais, investindo decisivamente em pesquisa e desenvolvimento. Pela natureza e dimensões dos desafios que enfrenta, o país não pode prescindir de sólida base científica e tecnológica. Sua segurança energética será tão maior quanto seu preparo para se antecipar a efeitos climáticos danosos, alguns já evidentes.

Pietro Erber é membro do Instituto Nacional de Eficiência Energética (Inee) e do Comitê Permanente de Energia da Academia Nacional de Engenharia.

Fonte: Valor Econômico – 10/01/2025