A crescente instabilidade climática tem colocado o setor sucroenergético em alerta, especialmente em regiões produtivas como Minas Gerais. Nesse contexto, a irrigação vem se consolidando como uma solução estratégica para garantir estabilidade produtiva e reduzir os impactos das secas extremas. Para entender melhor o impacto e as perspectivas da irrigação no setor sucroenergético, conversamos com Mário Campos, presidente da SIAMIG Bioenergia (Associação da Indústria da Bioenergia e do Açúcar de Minas Gerais), entidade que representa 34 associados produtores de açúcar, etanol e bioeletricidade em Minas Gerais. Economista formado pela UFMG, com MBA em Finanças pelo IBMEC e Relações Governamentais pela FGV.
Pivot Point: Poderia compartilhar um pouco sobre sua trajetória profissional e o que o levou a assumir a presidência da SIAMIG Bioenergia?
Mário Campos: Eu entrei na SIAMIG em março de 2003 como estagiário, enquanto cursava Economia UFMG. Com o tempo, passei a assessor econômico, superinten- dente e, mais tarde, assumi a presidência da entidade e dos dois sindicatos patronais. Minha formação como economista, especialista em finanças e relações governa- mentais foi essencial nesse percurso. Estar próximo dos produtores e entender as demandas do setor sucroenergético sempre foram os principais pilares da minha atuação
PP: Ao longo dos anos, quais foram os principais desafios e conquistas que marcaram sua atuação à frente da SIAMIG?
MC: A principal conquista que eu vejo é que consegui- mos criar um ambiente de produção diferenciado em Minas Gerais, onde o setor convive de forma sustentável. As unidades produtoras conseguem coexistir com seus diferentes modelos de negócio, seja com a produção própria ou com a produção de cana de fornecedores, sem a concorrência desleal que observamos no estado de São Paulo. Isso permitiu que todos pudessem crescer com sustentabilidade. Além disso, com o aumento da produção em Minas, conseguimos abrir um mercado interno forte no estado, especialmente a partir da redução da carga do imposto estadual (ICMS) sobre o etanol hidratado. Esse avanço fortaleceu o consumo local, tornando Minas Gerais um grande produtor de açúcar, com forte presença no mercado exportador, e também um grande produtor de etanol, com um mercado interno pujante e em crescimento.
PP: Poderia comentar sobre a importância da irri- gação para o setor sucroenergético, em especial na produção de cana-de-açúcar, etanol e bioenergia?
MC: A cana-de-açúcar nunca foi uma cultura que teve a irrigação como um de seus principais fatores. Nos últi- mos anos, porém, observamos os efeitos das mudanças climáticas, com extremos climáticos cada vez mais pre- sentes no setor, principalmente períodos prolongados de seca. Isso tem prejudicado a produção em muitas localidades. Por outro lado, a grande disponibilidade de água em algumas regiões torna viável a utilização da irrigação em diversos aspectos e tecnologias, o que tem despertado um olhar mais atento do setor para essa prática.
Nos últimos anos, temos observado um crescimento significativo da irrigação, inclusive em regiões tradicionais. Em Minas Gerais, especificamente, destacam-se duas regiões: o Noroeste e o Norte do estado, onde o setor já nasceu com a irrigação devido às peculiaridades dessas localidades. Nessas regiões, a prática já é amplamente conhecida, com três empresas que utilizam fortemente a irrigação. Além disso, temos percebido, ao longo dos últimos anos, a entrada crescente da irrigação em outras localidades, como o Triângulo Mineiro e a região Central do estado.
PP: Você considera que a irrigação pode aumentar a resiliência do setor frente a condições climáticas ex- tremas, como secas prolongadas?
MC: A irrigação pode, sim, aumentar essa resiliência. A cana-de-açúcar, por si só, já é uma cultura bastante resi- liente, com capacidade de suportar extremos climáticos. No entanto, é claro que ela sofre perdas de produtividade diante dessas condições. Se conseguirmos implementar a irrigação de maneira inteligente no processo produtivo, podemos reduzir significativamente os impactos dessas variações climáticas, mantendo a produtividade ou, pelo menos, minimizando as perdas. Dessa forma, conseguimos garantir uma produção mais consistente e estável de cana-de-açúcar.
PP: Na sua visão, qual é o impacto econômico direto da irrigação na produção de biocombustíveis em termos de rendimento agrícola e competitividade do setor?
MC: O potencial produtivo da cana-de-açúcar é muito maior do que a média atual registrada no Brasil. A irrigação, combinada com práticas eficientes de manejo, pode maximizar esse potencial. Fatores como a escolha da variedade, o ambiente de produção, a qualidade do solo, a colheita e o plantio também interferem diretamente na produtividade. No entanto, quando a irrigação é aplicada de forma inteligente no processo produtivo, os resultados observados são expressivos.
Em diversas usinas onde a irrigação já é utilizada em larga escala, os retornos em produtividade agrícola são significativos, alcançando níveis semelhantes aos das melhores regiões produtoras de cana-de-açúcar no Brasil. A irrigação permite que empresas situadas em ambientes mais desafiadores atinjam uma produtividade mais próxima do quartil superior no país, o que representa um avanço substancial.
É importante ressaltar que há um custo associado à implementação da irrigação, que precisa ser incorporado ao produto final. Contudo, ao aumentar a produtividade, a usina pode colher mais cana na mesma área ou até mesmo reduzir a área necessária para a produção. Isso otimiza a estrutura produtiva, reduz custos logísticos e permite que o setor ofereça produtos mais competitivos para a sociedade.
PP: Quais são as perspectivas para o futuro do setor sucroenergético em Minas Gerais e no Brasil? Há ex- pectativas de novos avanços tecnológicos?
MC: Estamos muito confiantes. O Brasil acaba de aprovar a Lei do Combustível do Futuro, que aumenta os percentuais de etanol na gasolina e, por si só, projeta um aumento de demanda nos próximos anos. Temos trabalhado intensamente na reforma tributária para garantir um diferencial tributário consistente, que nos dê competitividade em todo o território nacional.
Hoje, o consumo de etanol é muito mais concentrado em grandes estados produtores, como São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Com a reforma, há a perspectiva de uma distribuição mais uniforme desse consumo em todo o país.
Além disso, temos observado o etanol ganhando es- paço como insumo para a produção de novos biocombustíveis, como o SAF (combustível sustentável de aviação), o biobunker (para navios) e o hidrogênio de baixa emissão. Ou seja, há uma série de possibilidades promissoras nos próximos anos, dentro do contexto da mobilidade sustentável e da transição energética, que o Brasil já lidera com grande destaque por meio do uso de biocombustíveis.
No contexto do setor sucroenergético, Minas Gerais tem uma posição privilegiada por não estar distante dos portos de exportação de açúcar. Isso incentiva o estado a produzir mais açúcar dentro do mix das usinas. Nos últi- mos anos, observamos muitas destilarias de etanol investindo na instalação de fábricas de açúcar, o que permitiu a Minas aumentar sua participação na exportação de açúcar do Brasil. Essa característica reforça o papel do estado como um importante supridor mundial desse produto.
PP: A Valley é reconhecida mundialmente por suas soluções de irrigação avançadas. Você acredita que as tecnologias oferecidas pela Valley têm contribuí- do para melhorar a eficiência hídrica e a produtividade da cana-de-açúcar?
MC: Nós temos muito respeito pela Valley, que, com certeza, possui uma grande capacidade de suprir a necessidade do setor no que diz respeito à irrigação. A empresa oferece equipamentos e tecnologias adequadas, além de possibilitar a escolha das melhores soluções para cada realidade. É importante também buscar, em parceria com o Estado, formas de reduzir os custos de implementação desses projetos, seja por meio de incentivos ou políticas públicas. Nós reconhecemos a importância da Valley e o papel fundamental que ela desempenha nesse processo.
PP: Como presidente da SIAMIG Bioenergia, que mensagem deixaria para os produtores e para o setor como um todo sobre a importância de investir em práticas de irrigação sustentável?
MC: Nos últimos anos temos observado a irrigação entrar no nosso segmento como uma possibilidade interessante e importante para reduzir os efeitos das mudanças climáticas. No entanto, acreditamos que a irrigação deve ser tratada com muita responsabilidade por parte dos órgãos que concedem as outorgas.
As crises climáticas têm levado à escassez de recursos hídricos em muitas localidades. Defendemos, portanto, uma irrigação responsável e criteriosa, para que no futuro não tenhamos regiões de conflito, como já ocorre em algumas áreas de Minas Gerais. Nessas regiões, as soluções acabam sendo muito difíceis de implementar, principalmente devido à falta de organização estatal e à incapacidade de articulação empresarial.
Portanto, a irrigação precisa ser desenvolvida equilibrando os interesses produtivos com a sustentabilidade dos recursos hídricos.
PP: Como a irrigação contribui para a eficiência energética e a sustentabilidade do setor sucroenergético?
MC: Todos os fatores de produção que visam o aumento da produtividade agrícola são, por si só, fundamentais para a sustentabilidade ambiental e econômica do negócio. A irrigação não é diferente. Com ela, é possível alcançar maior produtividade em áreas menores, otimizando o raio de atuação das usinas e a logística de entrega da cana. Por exemplo, com um raio de atuação menor, há uma redução no consumo de combustível necessário para o transporte da cana até a usina. Além disso, ao produzir mais em uma área reduzida, é possível otimizar o uso de fertilizantes e defensivos agrícolas.
Hoje, contamos com o programa Renovabio, no qual todos os fatores de produção são considerados no cálculo de eficiência energética e na geração de certificados. Quando se utilizam sistemas de irrigação eficientes, há ganhos significativos na calculadora do Renovabio, o que se traduz em um aumento na emissão de certifica- dos de descarbonização (CBIOs) para as usinas. Portanto, a irrigação traz não apenas um aumento na produtividade, mas também ganhos sustentáveis e econômicos que podem ser escalados e otimizados com o uso inteligente da água e da tecnologia.
Fonte: Revista Pivot Point – 14/01/2025