A presença do etanol deve aumentar nos carros movidos a combustão no Brasil. A aposta do governo federal é ampliar a participação do combustível renovável em até 30% na mistura da gasolina vendida nos postos. Desde 2015, a proporção máxima é de 27%.
A mudança está prevista na lei batizada como “combustível do futuro” (PL 4516/23), em discussão no Senado depois da aprovação na Câmara dos Deputados em março passado. Antes da mistura chegar aos postos, porém, será preciso comprovar sua viabilidade técnica, diz a lei. Para especialistas do setor automotivo, o pedido de testes é uma mera formalidade. A alteração na mistura não deve trazer grandes problemas para os brasileiros que abastecem o tanque somente com gasolina.
“Estamos falando de uma tecnologia dominada no país há 60 anos. Efetivamente, o impacto da adição de 3% a mais de etanol nos motores será baixo e o benefício ambiental é grande”, avalia Camilo Adas, conselheiro da SAE Brasil (Sociedade de Engenheiros da Mobilidade). Mas a investida na lei que incentiva o etanol, fonte mais limpa, não significa freio no petróleo.
O plano da brasileira Petrobras é abrir uma nova frente de exploração do combustível fóssil, maior responsável pelas emissões de gases do efeito estufa que aceleram as mudanças climáticas. Até 2028, a petroleira pretende perfurar 16 poços na Margem Equatorial, na bacia marítima da foz do Amazonas. O pedido de licença está em análise pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).
Além disso, especialistas ouvidos pela DW apontam que mais etanol na mistura não irá impactar, necessariamente, de forma positiva no bolso dos motoristas e que a possível futura necessidade de mais áreas de cana-de-açúcar pode levar a monocultura a regiões sensíveis. Reforço à tradição brasileira O etanol à base de cana-de-açúcar é uma invenção brasileira desenvolvida em meados da década de 1920. Desde 1931, é adicionado à gasolina – naquela época, um decreto obrigou importadores de petróleo a misturar 5% do álcool ao combustível fóssil.
O impulso maior veio na década de 1970, com a crise mundial do petróleo. O Proacool (Programa Nacional do Álcool) estimulou a produção do etanol para diminuir a dependência brasileira das exportações de petróleo. “Esse combustível foi e segue sendo importante como estratégia de diversificação das fontes energéticas, para que o país não seja dependente apenas da gasolina. Ele ajuda também a reduzir emissões por ser um biocombustível”, afirma Felipe Barcellos, pesquisador do Iema (Instituto de Energia e Meio Ambiente). No Brasil, a estimativa é que 85% dos carros leves em circulação tenham motor flex, adaptados tanto para etanol quanto para gasolina. Por outro lado, cerca de 30% deles são abastecidos exclusivamente com etanol.
A distribuição e os preços do biocombustível sofrem grande variação de estado para estado, a depender da proximidade com a região produtora. Produzido principalmente a partir da biomassa de cana, o etanol pode ser considerado neutro em emissões de dióxido de carbono, explica Barcellos.
No seu crescimento, a cana retira da atmosfera CO2, o que funciona como uma “poupança” mais tarde, quando o mesmo gás é liberado na queima do combustível. “Etanol é uma molécula incrível. Ela é cheia de energia, líquida como o petróleo, mas é sustentável. Se as usinas forem feitas para capturar carbono, isso melhora ainda mais a performance ambiental”, avalia Gonçalo Pereira, professor do Instituto de Biologia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
Etanol x carros elétricos Mesmo com montadoras pelo mundo afora anunciado metas para extinguir motores a combustão e investir em carros elétricos, o biocombustível brasileiro deve ter vida longa, prevê Camilo Adas, que tem mais de três décadas de experiência no setor automotivo.
“Discussões e publicações recentes mostram que boa parte das montadoras brasileiras vai adotar múltiplas rotas tecnológicas, independentemente do que outros mercados irão definir. Não tem bala de prata”, afirma Adas à DW. A depender da matriz energética, adiciona o engenheiro, a eletrificação dos carros não é a melhor solução. Ou seja, um país que tem uma frota grande de elétricos nas ruas mas gera eletricidade em usinas movidas a carvão não abate tanto suas emissões de CO2.
No Brasil, a expectativa é que as montadoras invistam em carros híbridos, que podem ser movidos tanto a combustível quanto a eletricidade. “É preciso olhar qual a eficácia das rotas tecnológicas. Aumentar a mistura do etanol na gasolina é uma melhoria e tem que ser feita sem paixão, mas com conhecimento e análise de tecnologia”, analisa Adas.
Baixo efeito nos preços Para Luís Augusto Barbosa Cortez, engenheiro agrônomo e autor do livro “The Future Role of Biofuels in the New Energy Transition, Lessons and perspectives of biofuels in Brazil”, lançado em 2023, o Brasil só tem a ganhar com a investida, mas os preços para o consumidor final não devem mudar muito. “Ganha a Petrobras, que compra etanol para a mistura e vende a preço de gasolina, que segue a cotação internacional”, analisa em entrevista à DW.
Helder Queiroz, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio Janeiro) e coordenador do grupo de Economia e Energia, concorda que a política é uma solução interessante, mas seu efeito no bolso do motorista é limitado. “Não dá para dizer se o preço para o consumidor vai melhorar ou piorar, isso vai depender da incidência de carga tributária, do preço do frete e do preço da gasolina”, detalha Queiroz, lembrando que o valor do etanol vendido na bomba tem a tendência de acompanhar o da gasolina.
Preocupação com monocultura A lei “combustível do futuro” inclui ainda a elevação dos teores de mistura de biodiesel no diesel para 20% até 2030. Até 2031, a proporção deverá ser de 25%. Ao contrário do etanol, não será preciso comprovar a viabilidade técnica que leve em conta os impactos técnico-mecânicos, econômicos e ambientais da medida. “O aumento da mistura do biodiesel é fundamental. Mas há bastante coisa a ser testada, principalmente na cadeia de produção.
A regulação é boa, o país pode perder uma grande oportunidade se não olhar para frota específica de veículos”, comenta Adas, mencionando os caminhões. Felipe Barcellos, do Iema, ressalta que o incentivo aos biocombustíveis pode se refletir diretamente na dinâmica do uso do solo. As monoculturas para sua produção, seja cana-de-açúcar ou milho, precisam de grandes extensões de terras e geralmente se concentram nas mãos de poucos donos, o que pode gerar conflitos.
“O etanol não necessariamente cria isso hoje. Ele não pode ser plantado na Amazônia, por exemplo. Mas se o plano é aumentar muito essa participação, é necessário olhar para este potencial impacto e fazer um planejamento de área, até quando esta área pode crescer e para onde, para que não se deixe tudo apenas ao sabor do mercado”, diz Barcellos.
Fonte: UOL – 22/04/2024