O bagaço e a palha da cana-de-açúcar passaram a ser matérias-primas qualificadas, ao lado da vinhaça e torta de filtro (subprodutos obtidos diretamente nas usinas). Em tempos de descarbonização dos processos produtivos, a construção de rotas tecnológicas, tanto mirando a produção de combustíveis quanto a de energia elétrica, deixam toda e qualquer biomassa em evidência.
A geração de eletricidade para a rede a partir de biomassa, principalmente de bagaço e palha da cana, avançou 14% em 2023, segundo a União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia (Unica), com base em dados da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) e da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Os quase 21 mil GWh produzidos equivalem a 4% do consumo nacional de energia elétrica. A produção, além de intermitente, coincide com o período seco do sistema elétrico, de maio a novembro.
Para 2024, a estimativa é a biomassa proporcionar 11% do acréscimo da capacidade instalada no país. A maioria das 24 usinas que devem estar em operação até dezembro vão funcionar a partir de uma plêiade de fontes energéticas: bagaço/palha de cana, biogás, capim elefante e casca de arroz, biomassa florestal (cavaco de madeira oriundo de florestas plantadas) e resíduos sólidos urbanos.
Para o Brasil surfar na onda da transição energética e da biomassa, e todo potencial ser consolidado, há pontos que devem ser analisados, diz Maurício Lopes, engenheiro agrônomo que dirigiu a Embrapa entre outubro de 2012 a outubro de 2018. Segundo ele, a indústria dependente de biomassa tem desafios devido à natureza dispersa da produção e do relativo baixo valor agregado da matéria-prima. Apesar de ser produzida em grandes volumes, diz, a biomassa tem seu valor por unidade relativamente baixo, o que torna a logística de transporte um fator crítico.
“A biomassa é usualmente produzida de forma distribuída por vastas áreas geográficas, o que complica a coleta e o transporte até as unidades de processamento. Além disso, a infraestrutura para o processamento da biomassa é menos desenvolvida e menos centralizada, em comparação com o petróleo, o que resulta em uma cadeia de valor mais fragmentada e com maiores custos logísticos”, avalia Lopes.
Já para Luciano Rodrigues, diretor de inteligência setorial da Unica, a descentralização pode até ser uma vantagem – como as usinas paulistas estão próximas de centros consumidores de energia, não haveria necessidade de investir em linhas de transmissão. “Todo o sistema brasileiro havia sido desenhado a partir das grandes hidrelétricas. Com as renováveis, se quebrou um pouco isso. E vamos ter que nos adaptar a essa estrutura”.
Rodrigues ainda cita as possibilidades em relação à biomassa que já em aplicação no setor privado. “Há uma usina da Raízen que já roda faz algum tempo com biogás produzido a partir de um subproduto da produção de etanol que antes era considerado resíduo. Outras usinas, como a da Cocal e da Adeco, purificam o biogás para ele virar biometano, que vai substituir o diesel e o gás natural”, aponta. “São duas linhas que devem crescer bastante nos próximos anos”.
Apesar da biomassa, em termos gerais, ter crescido bastante ao redor da última década – apesar de ter sido ultrapassada pela energia solar e eólica -, Jacyr Costa, coordenador do Comitê de Agroenergia da (Associação Brasileira do Agronegócio (Abag), afirma que outros temas no horizonte devem ajudar a estimular o setor. E, mais uma vez, o Brasil está bem posicionado. Costa cita o combustível sustentável de aviação (SAF, na sigla em inglês), que terá que ser usado por toda a indústria do setor até 2050.
“É um potencial bastante grande que existe pela frente. Será uma produção feita a partir de duas linhas principais: uma usando etanol, e outra, os óleos vegetais, sejam de soja, de canola, de palma. Ou seja, em todos esses, o Brasil é campeão”, diz.
Afirmação que coincide com a da cientista Gláucia Souza, professora titular do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Programa Fapesp de Pesquisa em Bioenergia (Bioen). “No caso do SAF, já estamos até certificados como produtor do combustível. Até no G20, agora, o Brasil está promovendo os biocombustíveis e a transição energética. Temos capacidade de aproveitar completamente o nosso potencial. É preciso também mostrar que não existe conflito com a produção de alimentos e temos formas agnósticas de contabilizar o carbono, sem distorções”, afirma a pesquisadora.
Para que todo o potencial brasileiro se concretize no mundo real, segundo Maurício Lopes, ex-presidente da Embrapa, é preciso fundamentalmente um esforço coordenado. “O mercado precisa de condições que garantam os investimentos, com uma infraestrutura robusta e eficiente para superar os desafios logísticos”, afirma. Fora isso, também temos um caminho a percorrer em definições de políticas públicas de longo prazo, que ofereçam previsibilidade necessária para atrair investimentos e fomentar a inovação no setor.”
Fonte: Valor Econômico – 30/08/2024